Lula foi chamado a apresentar propostas nesses casos, mas, ao longo do mandato, perdeu poder de mediação. Ao vencer eleição, Lula prometeu se ‘engajar’ pela paz no mundo. Visão de drone mostra palestinos deslocados caminhando pelos escombros enquanto tentam retornar para suas casas, em meio a um cessar-fogo entre Israel e o Hamas, no norte da Faixa de Gaza.
REUTERS/Mahmoud Al-Basos
O Brasil falhou em se colocar como mediador e conciliador em grandes crises globais, como a guerra da Ucrânia e a invasão israelense em Gaza. É como avaliam especialistas ouvidos pela GloboNews.
Quando tomou posse para o terceiro mandato, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) passou a carregar uma expectativa de parte da comunidade internacional — e também por se colocar desta forma — de que o Brasil poderia atuar como um dos mediadores de conflitos internacionais ao redor do mundo.
Em linhas gerais, no entanto, os especialistas entendem que a atuação não funcionou em razão da falta de vontade das partes de negociar, por interesses de outros países e até mesmo por não ter a influência que pensou ter.
No discurso que fez em 31 de outubro de 2022, quando derrotou o então candidato à reeleição Jair Bolsonaro, Lula disse que iria “lutar” pela reforma da governança global, citando como exemplo a entrada de mais países no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU).
Discurso de Lula após vitória na eleição presidencial de 2022.
Reuters/Carla Carniel
“Estamos prontos para nos engajar outra vez no combate à fome e à desigualdade no mundo e nos esforços para a promoção da paz entre os povos”, disse Lula na ocasião.
No primeiro ano de mandato de Lula como presidente, o Brasil apareceu, em diferentes momentos, como possível mediador:
da crise democrática na Venezuela, ajudando a negociar um acordo eleitoral;
da guerra em Gaza, comandando o Conselho de Segurança das Nações Unidas;
e da invasão da Ucrânia pela Rússia, a pedido do governo ucraniano.
No entanto, neste momento:
Lula e Maduro estão distantes politicamente;
o presidente foi declarado persona non grata pelo governo de Israel;
o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky passou a criticar Lula publicamente.
(leia mais abaixo os detalhes de cada caso)
Só há acordo quando partes querem negociar
Conselheiro emérito do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), o diplomata Marcos Azambuja disse à GloboNews avaliar que o Brasil é “sempre” visto no mundo como um país que tem disponibilidade em ajudar a mediar conflitos. Entretanto, pontua que só é possível mediar qualquer acordo quando as partes diretamente envolvidas querem chegar a um acordo.
Ex-embaixador do Brasil em países como França e Argentina e com passagem pela ONU, Azambuja ressalta que a posição do Brasil deve ser sempre “equilibrada”, o que, na prática, pode ser “indesejável” a uma das partes envolvidas. O diplomata afirma, ainda, que a situação em alguns casos ficou “tão aguda” que não dependeria do Brasil a solução, mas, sim, dos interesses de outros países.
“O Brasil tem feito o que deveria fazer: dizer que não aceita nenhuma aquisição de território pela força. O Brasil está cumprindo seu dever, o problema é mais complexo que isso. O Brasil tem de manter uma atitude sensível”, disse o diplomata.
“O Brasil deve ser cuidadoso, tem que equilibrar a balança considerando seus valores e interesses também. […] Mas, ao ser muito equilibrado, pode acabar se tornando de certa maneira um intermediário indesejável a uma parte”, afirmou Azambuja.
Ucrânia
Em julho de 2023, com Lula já na cadeira de presidente da República, Zelensky disse em entrevista à GloboNews que Lula poderia ajudar no processo de paz tentando, por exemplo, reunir os presidentes da América Latina para um encontro para discutir o tema. Na ocasião, disse ainda que via em Lula uma pessoa que apoia a soberania ucraniana.
Lula e Zelensky se reuniram presencialmente em Nova York em setembro de 2023.
Ricardo Stuckert/Planalto
Nesse contexto, Lula chegou a enviar o assessor especial da Presidência Celso Amorim à Ucrânia e à Rússia para conversas. Além disso, o presidente brasileiro passou a defender a criação de um “clube da paz”, formado por países como China, Indonésia e Índia, o que, na visão de Lula, poderia resultar em um acordo de paz.
Ao longo dos últimos dois anos, porém, Lula e Zelensky acabaram de desentendendo, trocando declarações públicas críticas um ao outro.
Zelensky disse nesta semana, por exemplo, que o presidente brasileiro não é mais um “player” nas negociações de paz na Ucrânia. Lula, por sua vez, disse na ONU no ano passado que, se Zelensky fosse “esperto”, diria que “a solução é diplomática, não militar”.
“Hoje não tem nenhum intermediário aceito pelos dois países [Rússia e Ucrânia]. Ninguém. O momento também não mostra que as partes tenham condição mínima de negociar, de ouvir uma à outra. O Brasil não tem credenciais para ser esse intermediário, mas também ninguém tem. Vamos aguardar para ver se o Trump passe a representar essa força”, disse Azambuja.
Venezuela
No caso da Venezuela, Lula convidou Nicolás Maduro a Brasília em 2023 e disse que cabia à própria Venezuela mostrar a sua “narrativa” sobre a democracia no país para que Maduro pudesse fazer as pessoas mudarem de opinião sobre o regime. Nesse mesmo encontro, Maduro pediu ao Brasil que não fechasse mais “as portas” à Venezuela, acrescentando que os dois países deveriam permanecer “sempre” unidos.
Presidentes Lula e Maduro durante encontro em Brasília, em maio de 2023.
Ueslei Marcelino/Reuters
Nesse cenário, Lula enviou Celso Amorim às negociações do chamado Acordo de Barbados, que, entre outros pontos, previa a realização de eleições livres na Venezuela.
Passados cerca de dois anos desde a ida de Maduro a Brasília, os dois presidentes estão politicamente distantes, assim como as relações diplomáticas entre os dois países.
O processo eleitoral na Venezuela até aconteceu em 2024, mas a oposição, organismos internacionais e diversos líderes mundiais questionam o resultado. Segundo o Conselho Nacional Eleitoral, a vitória foi de Maduro. No entanto, Lula, a exemplo de outros chefes de Estado, cobrou publicamente a divulgação das chamadas atas eleitorais. Segundo a oposição, se divulgadas, comprovariam a vitória de Edmundo Gonzáles – mas a Suprema Corte venezuelana, alinhada a Maduro, proibiu a divulgação.
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Para Azambuja, um eventual comportamento visto como democrático por parte de Nicolás Maduro depende mais do próprio presidente venezuelano que da articulação de terceiros.
“Nós achávamos que tínhamos mais influência que temos. Mas me parece que, no caso da Venezuela, ainda não há condições. Esse tipo de negociação é feito agricultura, tem que esperar amadurecer para colher. Não adianta tirar antes. E não é agora ainda. Até pode chegar o momento, mas não é agora”, disse Marcos Azambuja.
Gaza
Em outubro de 2023, quando presidiu o Conselho de Segurança da ONU, o Brasil tentou sem sucesso aprovar resolução que levasse a um cessar-fogo na guerra em Gaza entre o governo de Israel e o grupo terrorista Hamas. Na ocasião, os diplomatas brasileiros até conseguiram o número de votos suficiente para que a resolução passasse. No entanto, os Estados Unidos vetaram a proposta.
Veto dos EUA de texto do Brasil na ONU
Mike Segar/Reuters
Na ocasião, diplomatas até de outros países elogiaram o esforço do Brasil em busca de uma solução para o conflito. Mas essa participação em uma eventual mediação foi enterrada quando, em fevereiro de 2024, Lula comparou o que acontecia em Gaza ao que o regime nazista de Adolf Hitler fez com os judeus na Alemanha.
Como consequência, o presidente brasileiro foi declarado persona non grata em Israel, e o então embaixador brasileiro em Tel Aviv foi levado ao Museu do Holocausto.
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Esse episódio desencadeou uma crise diplomática, o embaixador foi chamado de volta ao Brasil e o Itamaraty questionou publicamente os limites éticos e legais das ações israelenses em Gaza.
Chefe do Escritório de Representação Brasileira em Ramala entre 2020 e 2024, o diplomata Alessandro Candeas esteve à frente das negociações para a retirada de brasileiros da Faixa de Gaza após a eclosão da guerra. Ele atribui à ONU o insucesso da proposta brasileira para uma trégua no conflito, conquistada apenas neste mês após acordo mediado pelos EUA.
“Agimos dentro do sistema multilateral, não como ator individual. O problema é a disfuncionalidade do sistema da ONU, que não resolveu as crises e ficou à deriva, dependendo dos jogos de poder das grandes potências”, afirmou Candeas à GloboNews.
O diplomata afirma ainda que, daqui em diante, a discussão sobre o fim dos dois conflitos passará, inevitavelmente, por Donald Trump.
“As guerras da Ucrânia e de Gaza, a disfuncionalidade da ONU e o retorno de Trump marcam a nova ordem mundial do século 21. Muito para pior, pois perdemos os avanços da governança global conquistados no século 20 pós-Segunda Guerra”, diz Candeas.
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Avaliação no Planalto
Um assessor da Presidência da República para a área internacional afirmou à GloboNews de forma reservada que, embora o Brasil não tenha conseguido encabeçar uma solução para a guerra na Ucrânia, tampouco outros países alcançaram esse feito passados quase três anos desde o início do conflito.
Este mesmo assessor aponta ainda que, apesar dos ruídos entre Lula e Zelensky, o Brasil participou, a convite do governo ucraniano, de reuniões com outros Estados para discutir o tema e construiu uma proposta conjunta com a China para um processo de paz.
Países como França, Alemanha e Reino Unido já buscaram o Brasil reservadamente para falar sobre a guerra em diferentes oportunidades, lembra ainda.
O conflito entre Israel e Gaza, por sua vez, é visto de outra forma por aqueles que assessoram o presidente brasileiro nas relações internacionais. A avaliação nesse núcleo é a de que o Brasil exerceu mais um papel político do que o de mediador.